Dois estranhos num banco de cimento


Hoje de manhã, por volta de umas sete e meia, saí de casa rumo ao início da árdua tarefa de mais uma porção de obrigações. A rotina pode ser dura numa quinta-feira, logo cedo. Olhos semiabertos, pernas bambas. É, eu estava com sono e em cima da hora, só para variar.

Foi quando alcancei o costumeiro ponto de ônibus. Lotado, é claro. Por lá tem um banco, desses de cimento, com espaços onde cabem quatro pessoas sentadas. Os dois primeiros estavam levemente molhados, tinha garoado durante a noite. Nos dois últimos, um homem e outro vago. Era minha deixa para descansar os pés cansados, depois dos passos largos dados para não perder a condução.



Pois bem, não pensei duas vezes e me aconcheguei no assento. Tal foi minha surpresa quando, assim que repouso a poupança, o rapaz ao meu lado se levanta e troca de lugar. Menos aperto, é claro, ponto para mim. Mas ele preferiu molhar as calças num assento úmido do que dividir aqueles centímetros quadrados comigo.

Não, caro leitor, não sofro de nenhum tipo de carência. E, se sofresse, guardaria para minha terapeuta. Ou será que sofro? Ou será que devo mesmo guardar os detalhes para a psicologia? Não. A gente precisa falar sobre... Afeto.


"Afeto", do latim "affectus", que, por sua vez, vem do verbo "afficere". O significado: tocar, comover o espírito e, por consequência, unir, fixar. Também pode ter o sentido de "adoecer", mas quem é que não adoece um pouco quando se permite sentir o mundo de outra pessoa? De certo, você já passou pela dor de uma decepção, de um coração partido. São formas de adoecer, certo?! Mas não só isso. A "paixão" também é uma palavra que vem do latim, derivada do verbo "patī", que significa nada mais que... "Sofrer".

É, meu amigo, quem ama, sofre. É de lei. É regra desde os tempos de Platão, e não serão novas tecnologias ou letras de canções populares que curarão este mal. Mas este não é o ponto, e, sim: qual é o problema em doer um pouco, se, no fim, vale a pena? Pela conquista ou pela lição. "É preciso que eu suporte duas ou três lagartas se quiser conhecer as borboletas", já diria Antoine de Saint-Exupéry (Padre Fábio de Melo que me perdoe).


E isso nos leva de volta ao meu ponto de ônibus na manhã de hoje. Não, não era só um acento vago no meio de duas pessoas. Trata-se do abismo que existia entre nós dois ali, embaixo daquela cobertura de concreto.

Outro dia, numa conversa, uma amiga questionou um rapaz que dava em cima dela e as investidas não estavam de agrado. "O que foi que eu fiz para que ele pensasse que estava interessada? Só estava sendo simpática". É. As pessoas de hoje estão tão acostumadas a não receber nenhuma atenção especial, que qualquer afeto é afeto, entende? E a gente se apega.

Isso, num mundo que se move a 1,4 terabit por segundo, pode causar danos avassaladores. Pode custar vidas. Ou é realmente tão espantoso que, "do nada" apareça uma tal baleia azul que leva embora tantas crianças e adolescentes? Ela já estava ali, nadando entre você e seus filhos, o tempo todo, mesmo antes do "jogo". Foi a falta de afeto que fez com que ela, numa abocanhada, levasse todos os sonhos, vontades e projeções de uma vida futura dos pequenos para o fundo do mar.


Gente que prefere naufragar do que seguir remando, porque não se sente amada. Gente que não enxerga apenas um assento vago entre dois estranhos numa parada de ônibus. Mas, sim, uma grande lacuna, do tamanho de uma baleia, entre dois corações mais gelados do que o cimento do banco daquela construção.



Um comentário:

  1. Te dei as minhas primeiras impressões logo depois dele sair do forno (como sempre), mas fui pensando muito mais sobre isso durante o dia...
    Novamente e, sempre, digo: Encontrar pessoas que conseguem te tocar profundamente com as palavras é tão raro! Você é uma delas. Continue sempre usando esse, que é só mais um de seus talentos pra mudar a vida das pessoas ao seu redor.
    Amo você migo. No banco de concreto da vida, tô lá, sempre do seu lado <3

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