Imagina se pega na vista
Eu tenho algumas superstições. Sim, qual o problema? Por exemplo, acredito piamente, que será um dia de sorte quando vejo um passarinho azul. Não, a palavra "piamente" não foi usada como um trocadilho pelo fato de o passarinho piar. Pena, teria sido uma piada ótima, mas só pensei nela agora. Bom, voltando aos azulzinhos, não valem os periquitos, ok? Só os passarinhos azuis mesmo, daqueles que não se vê todo dia.
Isso me lembra a minha avó, que já se foi há uns anos. Não foi ela quem me ensinou a teoria do passarinho azul, mas tinha uma porção de histórias, achismos e superstições que eu achava graça (jeito carinhoso de dizer que eu tinha mais medo dessas coisas do que de achar um Michael Jackson embaixo da minha cama).
Exemplos: ai de mim se quando chovia tinha algum cachorro por perto! "Cachorro atrai raio". Passei uma infância inteira sem olhar pro espelho depois do almoço. "Entorta a boca". *Higiene bucal mandou um abraço*. Voltando aos dias chuvosos, tinha mais! Deu relâmpago? Fecha a boca, rápido. Tá, essa eu também não sei por que. Mas se a vó falou pra fechar, fecha logo, seu burro! Vai que você morre.
Tudo pode parecer estranho agora, mas eram os anos 90, minha gente. Outra era, quando tudo era permitido. No engatinhar da democracia brasileira, o povo botou na cabeça que aquilo ali era liberdade total! O que esperar de um mundo onde existia a Banheira do Gugu com gente pelada em TV aberta em pleno domingo na hora do almoço? EU SEI! Podíamos esperar o desespero da concorrência, é claro, mandando ver no Sushi Erótico! Bons tempos. Hoje temos que nos virar com nudes da Suzana Vieira.
Enfim, é claro que eu tô falando dos anos 90 porque foi quando minha avó me ensinou tudo isso. Ela era nova, mas nem tanto. Aprendeu quando ainda era criança, lá pelos anos... Não vou falar, em respeito ao RG da minha vózinha. ;) E o que ela me ensinou de mais legal foi: "imagina se pega na vista". Sim, leia-se "no olho", só que minha avó tinha um linguajar muito mais legal do que o seu.
Olha, eu não sei qual que era a onda dos anos 90, mas parece que a coisas eram todas atraídas por um campo eletromagnético, que as levava direto pro meu olho. Ou do meu irmão. Ou dos meus primos. De mais ninguém, juro. Ou, pelo menos, minha avó só se preocupava com as vistas da gente. Não a culpo, somos uma família de lindos olhos, realmente. Tá jogando bola e bateu com ela na parede? "Cuidado! Imagina se pega na vista?". Tá pintando um desenho e, de repente, o estojo com todos os lápis cai no chão? "Cuidadooo! Imagina se pega na vista?". Tá celebrando o Ano Novo e estouram uma champanhe? "Cuidadooooo! Imagina se pega na vista?". Tá brincando com um estilingue, que sua avó mesma fez, e seu primo mira na parede ao seu lado para te dar um susto, mas, por acidente, acerta um graveto razoavelmente grande na sua pálpebra esquerda? "MARILÚCIA DO CÉU, EU NAO AVISEI???!" É, Marilúcia é minha mãe. E, sim, essa história do estilingue é verdadeira. Ainda tenho a cicatriz para não me deixar mentir.
- Meus ossos. - Eu navisei?
De lá pra cá já se passaram mais de 20 anos. Cinco desde a última vez que vi minha avó. Mas ainda dá pra escutar, dentro da minha mente, a voz dela me mandando ter cuidado com a vista. Quem sabe, não fosse por ela, eu hoje fosse cego? Deus me livre! Essa sorte toda talvez eu deva, também, a muito passarinho azul que vi na vida. O fato é: nada comprova que cachorro atrai raio, que olhar no espelho depois do almoço entorta a boca ou que comer manga e beber leite acaba em morte (quando muito, numa desinteria). Mas é tudo isso que mantém nossos avós vivos, mesmo depois que já foram embora. E se, apesar disso, você não os consegue ver, cuidado! Deve ser porque alguma coisa pegou na sua vista.